“Angola atingiu níveis de corrupção insustentáveis que estavam a afastar os investidores externos”, disse João Lourenço, para justificar porque é que o MPLA (supostamente) elegeu essa prioridade para o seu mandato, e que afirma ser (supostamente) um desígnio nacional mas apenas “made in MPLA”.
Por Orlando Castro
O arresto de todos os bens de Isabel dos Santos e do marido, mais de um que um acto de justiça revela-se um acto político e partidário. Em quantos países desenvolvidos, democráticos, verdadeiros Estados de Direito, a mesma pessoa é Presidente de um partido que está no governo há 44 anos, é Presidente da República (não nominalmente eleito) e Titular do Poder Executivo?
“Eu tive a oportunidade de ver a dimensão real da corrupção em Angola”, declarou João Lourenço. E é verdade. Não só viu como foi, pelo menos do ponto de vista ético, moral e político, conivente, mesmo que apenas por omissão.
“Eu não vim de um país estrangeiro, eu sou parte do sistema, cresci dentro do MPLA, acompanhei tudo o que foi sendo feito, de bom e de mau”, diz João Lourenço, faltando-lhe a coragem para admitir publicamente que foi não só conivente como beneficiário dessa situação.
O MPLA valeu-se da sua qualificada maioria, também ele adquirida – como muito bem sabe João Lourenço – de forma fraudulenta, para fazer passar a Lei sobre o Repatriamento de Recursos Financeiros Domiciliados no Exterior do País, hostilizando com todas as suas forças a proposta então apresentada pela UNITA no seu projecto de Lei do Regime Extraordinário de Regularização Patrimonial (RERP).
A forma como o MPLA conduziu o processo mostrou que o partido não estava, não está, não estará, interessado numa lei que, de facto, fosse contra a impunidade.
As fragilidades da Lei sobre o Repatriamento de Recursos Financeiros Domiciliados no Exterior estão à vista. Desde logo a Lei limita-se a activos financeiros, permitindo (e dando tempo para uma fraudulenta reconversão) que alguém que tenha ilicitamente domiciliado dinheiro no exterior o pudesse converter em património imobiliário. E, claro, passado algum tempo fará, legalmente, o processo inverso.
Acresce que o Governo não sabe (em muitos casos não quer saber) quanto dinheiro se poderá repatriar nem quem são os seus titulares.
“Os sujeitos candidatos a repatriar capital não são obrigados a fazer qualquer declaração estando toda a operação de repatriamento submetida à regra do sigilo bancário. Os valores repatriados ainda que obtidos e domiciliados no exterior de forma ilícita pertencem integralmente a pessoa que cometeu tais ilícitos, abrindo o Estado mão de qualquer ressarcimento. Isto, de qualquer ângulo que se analise é indiscutivelmente uma acção de branqueamento de capitais”, afirmou o deputado da UNITA, Maurílio Luiele, em artigo publicado no dia 19 de Maio de 2018 no Jornal de Angola.
A lei (já mudou várias vezes de nome) sobre o Repatriamento Coercivo e Perda Alargada de Bens, entre eles financeiros, tem por objectivo dotar o ordenamento jurídico angolano de normas e mecanismos legais que permitam a materialização do repatriamento coercivo, com maior ênfase na perda alargada de bens a favor do Estado.
No caso dos “bens incongruentes” domiciliados no país, a ideia é, segundo o ministro da Justiça e Direitos Humanos angolano, Francisco Queiroz, confiscar esses bens e perseguir aqueles que detêm estes bens, em defesa dos interesses dos cidadãos.
A iniciativa surge enquadrada pela Lei de Repatriamento de Capitais, cujo prazo termina em Dezembro do ano passado, uma vez que o diploma “não cobre todas as incidências do processo”.
“Daí a necessidade, do ponto de vista da investigação criminal, instrução preparatória e do julgamento dos casos, de tornar mais apta na sua aplicação”, pode ler-se no documento.
Esta lei define também o que considera “bens congruentes”, adquiridos de forma legal, e “bens incongruentes”, que resultam de enriquecimento ilícito. Em caso de condenação, os bens incongruentes reverterão a favor do Estado.
A 26 de Junho de 2018, a Lei de Repatriamento de Capitais foi publicada no Diário da República de Angola, definindo que os cidadãos e empresas angolanas tinham até 26 de Dezembro (180 dias) para repatriar voluntariamente, sem perguntas ou investigações das autoridades, os recursos financeiros ilicitamente retirados de Angola, podendo até receber incentivos estatais.
De acordo com a lei, entre esses recursos, sem um tecto mínimo contam-se “depósitos bancários, à ordem, a prazo ou na forma de certificados de depósito ou de aforro, em contas domiciliadas em instituições financeiras bancárias no estrangeiro”.
A lei é aplicável às pessoas singulares residentes nacionais e às pessoas colectivas com sede ou domicílio em território angolano e que sejam titulares de recursos financeiros domiciliados no exterior do país.
“Visa o estabelecimento dos termos e das condições de repatriamento dos recursos financeiros domiciliados no exterior do país, os efeitos jurídicos de natureza fiscal cambial ou criminal do repatriamento voluntário”, além do “regime sancionatório do repatriamento coercivo dos recursos ilícitos mantidos no exterior”.
Contudo, não é aplicável às pessoas singulares residentes nacionais que à data anterior à entrada em vigor da lei “tenham sido condenadas judicialmente ou que estejam na condição de indiciadas em inquérito policial”, ou que sejam réus em processo pela prática de crimes relacionados com os recursos ilicitamente detidos ou expatriados para o estrangeiro.
Nomeadamente, crimes relacionados com terrorismo, tráfico de pessoas e de órgãos, escravidão, tráfico de droga ou contrabando, entre outros.
Após o fim do prazo, o repatriamento passará a ser feito de forma “coerciva”, como prevê a lei, “no caso, exclusivamente, dos recursos financeiros provenientes de operações comprovadamente ilícitas”.
A 25 de Setembro de 2018, Francisco Queiroz, sem nomear, lamentou a falta de colaboração de alguns bancos onde se encontram domiciliados capitais de origem ilícita, alegando que existe “alguma resistência em largar mão desses capitais”.
O ministro considerou “incoerente” a atitude dessas instituições financeiras “dos chamados paraísos fiscais ou mesmo das grandes capitais financeiras internacionais, cujos Governos ostentam um discurso de combate à corrupção, ao branqueamento de capitais e a outras práticas conexas, mas na prática dificultam as operações de regresso dos activos aos países de origem”.
Com esta atitude, as instituições financeiras em causa “contribuem para a perda de muitos milhares de milhões de dólares, provenientes principalmente dos países em desenvolvimento”.
A crónica fuga de capitais
A fuga de capitais de Angola poderá ter representado cerca de 7% do Produto Interno Bruto (PIB), perto dos dois mil milhões de euros, segundo algumas estimativas.
Estes dados foram divulgados já em e 4 de Novembro de 2014 pelo director do Centro de Estudos e Investigação Científica (CEIC) da Universidade Católica de Angola, Alves da Rocha, durante a apresentação do livro “Fuga de Capitais e a política de desenvolvimento a favor dos mais pobres em Angola”.
A análise contida nesta publicação, não oficial, baseia-se em estatísticas e estudos internacionais, apontando para uma fuga ilícita de capitais que em Angola poderá ter variado entre os 384 milhões de euros e os dois mil milhões de euros, anualmente, entre 2001 e 2010.
“Isto tem reflexos. Se é capital que sai, vai alimentar outras economias, vai gerar empregos noutros países. Quando nós também precisamos de investimento, de gerar emprego e distribuir melhor e mais rendimento a quem de facto está em níveis de sobrevivência”, afirmou Alves da Rocha.
O livro, que contou com contributos do português Paulo de Morais, presidente da Frente Cívica e regular colaborador do Folha 8, sobre a situação em Portugal, resultou de uma conferência internacional realizada em Junho de 2013, em Luanda, tendo então o ministério das Finanças estimado em apenas 17,5 milhões de dólares (14 milhões de euros) a fuga de capitais em Angola.
Números muito distantes dos que constam da publicação então apresentada pela Universidade Católica de Angola, sessão em que não marcou presença qualquer representante do Executivo angolano.
Pois. Onde andava o MPLA? Onde andava José Eduardo dos Santos? Onde andava João Lourenço?
Para Alves da Rocha, a “fraqueza dos bancos” e “algum laxismo” na aplicação da lei, como na fiscalização da saída de passageiros – e dinheiro – pelo aeroporto internacional de Luanda, mas também uma retribuição de juros superior em depósitos em dólares feitos nos paraísos fiscais, ajudam a explicar a situação.
No caso de Angola, se a fuga de capitais fosse travada, permitiria uma redução directa anual de 2,11% na taxa de pobreza, recordou o docente.
“Só por esta razão e não por outras, como a criação de emprego ou o crescimento do PIB”, sublinhou o director do CEIC.
A publicação reuniu artigos de investigação de nove académicos, entre angolanos, africanos, europeus e sul-americanos, e discute temas como a fuga de capitais e a redução da pobreza, o papel e a participação dos bancos na fuga de capitais, a corrupção, além do regime jurídico angolano em matéria de fuga de capitais.
Nos últimos 25 anos, estes investigadores estimam que África perdeu anualmente 22,5 mil milhões de dólares (18 mil milhões de euros) em fuga ilícita de capitais, superior ao PIB de 60% das economias subsaarianas.
À espera do exemplo presidencial
João Lourenço tenta convencer-nos que é diferente, que com ele tudo será diferente, que tem as mãos limpas. Mas onde andou nas últimas décadas o general João Lourenço? O Vice-Presidente do MPLA? Só chegou agora? Não tem património no estrangeiro? Se tem, já o declarou?
João Lourenço sempre foi um homem do sistema, do regime, do partido que personifica a corrupção, entre outras mortais doenças. 1984 – 1987: 1º Secretário do Comité Provincial do MPLA e Governador Provincial do Moxico; 1987 – 1990: 1º Secretário do Comité Provincial do MPLA e Governador Provincial de Benguela; 1984 – 1992: Deputado na Assembleia do Povo; 1990 – 1992: Chefe da Direcção Politica Nacional das FAPLA; 1992 – 1997: Secretário da Informação do MPLA; 1993 – 1998: Presidente do Grupo Parlamentar do MPLA; 1998 – 2003: Secretário-geral do MPLA; 1998 – 2003: Presidente da Comissão Constitucional; Membro da Comissão Permanente; Presidente da Bancada Parlamentar; 2003 – 2014: 1º Vice-presidente da Assembleia Nacional.
Além disso, alguém conhece a declaração de rendimentos de João Lourenço, bem como do seu património, incluindo rendimentos brutos, descrição dos elementos do seu activo patrimonial, existentes no país ou no estrangeiro, designadamente do património imobiliário, de quotas, acções ou outras partes sociais do capital de sociedades civis ou comerciais, carteiras de títulos, contas bancárias a prazo, aplicações financeiras equivalentes?
Alguém conhece a descrição do seu passivo, designadamente em relação ao Estado, a instituições de crédito e a quaisquer empresas, públicas ou privadas, no país ou no estrangeiro?
Alguém conhece a declaração de cargos sociais que tenha exercido no país ou no estrangeiro, em empresas, fundações ou associações de direito público?
Isto é o essencial. O acessório é tudo o resto. E até agora João Lourenço só deu a conhecer o… resto.
Apesar da unanimidade do Parlamento quanto à Lei da Probidade, e passado todo este tempo, o melhor é fazer, continuar a fazer, o que é aconselhável e prudente quando chegam notícias sobre a honorabilidade das novas figuras da outra face do mesmo disco do regime. Esperar (sentado) para ver se nos próximos dez ou 20 anos (o optimismos faz parte do nosso ADN) a “tolerância zero” sai do papel em relação aos donos dos aviários e não, como é habitual, no caso dos pilha-galinhas.